19. E Riobaldo fala dos sortilégios
E Riobaldo, que dormia
após seu primeiro combate, acorda no meio da noite. E vê um companheiro seu que, mexendo
ainda no fogo, parecia não querer dormir.
Riobaldo estava inquieto,
ansioso... e temia que estivesse assim por prever algo de ruim, por quem sabe
estar sentindo a aproximação dos inimigos.
E tenta então conversar
com Jõe Bexiguento:
“Só vi um, o
Jõe Bexiguento, sobrechamado o Alpercatas esse era homem de estranhez em muitos
seus costumes, conforme se dizia e era notado. Jõe Bexiguento parecia não estar
querendo ir dormir, tinha ficado na beira do fogo, remexendo as brasas; num
fusco em vermelho, dava para a cara dele se divulgar. E ele pitava. Meigo repus
o rifle, virei para o outro lado. Adormecer, pude; mas, com outros minutos,
tornei naquele mau susto de acordar. Isso aconteceu três vezes, reformadas. Jõe
Bexiguento reparou em meu dessossego, veio para o pé de minha rede, sentou no
chão. – “Horas destas, tem galo já cantando, noutros lugares...” – ele falou.
Não sei se dei alguma resposta. Agora eu estava cismado. Ou se fosse que algum
perigo se produzia por ali, e eu colhia o aviso? Não é que, com muitos, dose
disso sucedesse? Eu sabia, tinha ouvido falar: jagunços que pegam esse condão,
adivinham o invento de qualquer sobrevir, por isso em boa hora escapam. O
Hermógenes. João Goanhá, mais do que todos, era atreito a esses palpites de
fino ar, coraçãoados. Atual isso comigo? Que os bebelos rodeavam para ali, quem
sabe perto já rastejavam. Zé Bebelo mandava neles. Em todos o momentos, em Zé
Bebelo sempre pensei, e em como a vida é cheia de passagens emendadas. Eu, na
Nhanva, ensinando lição a ele, ditado e leitura, as contas de juros; depois, de
noite, na sala grande, na mesa grande, se comia canjica temperada com
leite,queijo, coco-da-baía, amendoim, açúcar, canela e manteiga-devaca. – “Fofo
faço, e em prazo, siô Baldo: acabar para uma vez com essa cambada canalha de
jagunços!” – ele referia, com rompante e festa no dizer, bebendo seu coité de
chá-decongonha, que de tão quente pelava. Então, agora, era eu também – Zé
Bebelo vinha de lá, comandando armas de esquadrões, e o que ele tinha jurado,
naquela ocasião, ficava sendo também de acabar comigo, com minha vida. Mas eu
prezava Zé Bebelo, minha simpatia é uma só, dada definitiva às altas, sempre
fui assim. Sendo que não fosse ele em sua pessoa, se ele no meio não estivesse,
tudo tinha outra ordem: eu podia pôr meu afinco o – farto destravado, no querer
combater. Mas, brigar, cruzando morte, com Zé Bebelo, eu vi que era isso que me
dava uma repugnância, em minha inteligência. Levantei da rede, e convidei Jõe
Bexiguento para se botar mais lenha no fogo. Ele disse: – “Convém não. Ocasiões
assim, convém acender nem vela de cera preta...” Enrolei um cigarro.
Contei ao Jõe
o que eu estava sentindo estúrdio; se não era agouramento? E ele me apaziguou:
que anjo aviso não vinha desse jeito, antes era uma certeza que minava fininha,
de dentro da idéia da gente, sem razoado nem discussão. O que eu purgava era
ranço nervoso, sobra da esquentação curtida nas horas de tiroteio. – “Comigo,
assim, depois de cada forte fogo, me dá esse porém. É uma coceira na mente,
comparando mal. Faz regular uns seis anos, que estou na jagunçagem, medo de
guerra não conheço; mas, na noite, passado cada fogo, não me livro disso, essa
desinquietação me vem...””
Na primeira entrevista do
casal, a namorada começou fazendo uma queixa trivial, típica de qualquer
namoro. E a psicóloga perguntou então ao namorado qual era sua queixa em
relação ao relacionamento. Ele respondeu:
- Ela não acredita que eu
a admiro. Como posso namorar alguém que não acredita na minha admiração?
A namorada fez cara de
espantada. A terapeuta pediu um exemplo.
- Ela fez um trabalho
para a faculdade. Li e achei o trabalho muito bom. Ela achou que eu estava
gozando, ironizando. Disse que sabia que eu faria o mesmo trabalho muito
melhor. Mas eu não estava ironizando. Realmente gostei muito do que ela tinha
escrito.
- E gostou por que?
- ... acho que porque o
que ela escreve é sempre assim: é ela encarnada. Ela escreve, se pensa e se
resolve... Eu não. Meus escritos normalmente são muito palavrório, mas não tem
realmente minhas questões, minhas dificuldades. São só palavras,
desencarnadas...
A terapeuta mostrou então
que o namorado tinha uma escala mais elevada em seu exame, chamada anti-intracepção.
Intracepção é voltar para si mesmo, retomar verdadeiramente a própria
experiência. Anti-intracepção é a dificuldade de fazer esse movimento. A pessoa
fica sem exemplos, sem o recurso de retomar a própria experiência de vida
para aumentar seu nível de consciência das coisas... e concluiu que o namorado
devia mesmo admirar como sua namorada conseguia pensar a própria vida e
cuidar-se, nos seus escritos.
Mas por que essa escala
elevada?
Voltando no tempo...
- Mãe, olha o poema que
eu escrevi!
Era a primeira vez que o
menino escrevia uma poema. A anterior, “Razões para amar o meu Brasil” foi um
dever de moral e cívica, não valia, foi obrigado e com tema constrangedor.
Poema mesmo, era esse o primeiro.
A mãe assustou-se ao ler:
- Você brigou com sua
irmã?!
- Não.
- Você brigou com algum
amiguinho seu?
- Não...
- Então, porque escreveu
isso?
- Uai, deu vontade... (A
família era toda de artistas, o menino achava que estava virando artista também.)
- Eh, bem... parabéns...
é seu primeiro poema...
E entregou o poema para o
pai ler.
- Você brigou com sua
irmã? - O pai também perguntou...
- Não!.
- Você brigou com algum
amigo seu?
- Não!!!
- Mas porque você
escreveu isso?
- Uai pai, me deu
vontade... escrevi.
- ... é... parabéns, meu
filho...
O Escuro
O escuro
É o mundo negro
É o que nós não vemos
É a destruição.
Significa que é o fim
Fim de uma amizade.
E o pai morreu dois dias
depois, do nada. Foi passar o fim de semana no sítio da família com uns amigos,
na sexta a noite começou a passar mal com o que parecia ser uma gripe forte. Na
manhã seguinte procurou o próprio pai, médico, dizendo que estava se sentindo
muito mal. Foi internado. Morreu a tarde, menos de 24 horas depois dos
primeiros sintomas, de meningite.
O menino não se lembrou
do poema. Mas alguma coisa o incomodava. Na primeira noite após a morte ele
sonhou com o pai. No sonho, esbarrou em sua barriga, fez um furinho e o pai
começou a esvaziar... quando ele estava quase sumindo, o menino se desesperou:
- Eu te matei! Eu te
matei!!
E o pai respondeu:
- Não, meu filho, eu já
estava morto.
E sumiu.
Quatro anos depois, agora
adolescente, a mãe lhe pergunta se ele ainda tem o primeiro poema que
escrevera. Ele diz que sim, vai no quarto e volta com o poema. Ela lhe
pergunta:
- De quando é esse poema?
- Dia tal...
- Que dia é esse?
- Sei lá, mãe... que dia
é esse?
- Dois dias antes de seu
pai morrer...
- ... como assim...? Você
já sabia disso? E porque não me contou antes?
- Tinha medo da sua
reação. Você era um menino. Antecipar a morte do próprio pai... tinha medo do
que você ia sentir.... mas agora você já tem 15 anos, acho que dá pra te
mostrar isso...
Como antecipar, como
parar para considerar o que sente e percebe, se quando o fez antecipou a morte
do pai? Se paro, penso. Se penso, sofro, então, bola pra frente... vamos indo,
fazendo e acontecendo, que é melhor do que pensar besteiras ou vislumbrar
tragédias.
E a culpa que sentimos se
antecipamos algo? O carro vazio passa direto por você, que pedia carona.
Enraivecido, você pensa: “Tomara que trombe!” E o carro atropela uma vaca. E
você grita: “Meu Deus, o que foi que fiz?!” Mas você não fez nada, foi a vaca!
Mas nos sentimos culpados, ou por causar diretamente, ou por omissão, por não ter
tentado impedir o acontecimento.
A anti-intracepção alta
fazia todo sentido.
O bloqueio da antecipação
é tema antigo da história humana. O conceito de sortilégio, por exemplo, está intimamente ligado ao impedimento do
que poderíamos chamar de memória do futuro. Sortilégio vem do latim medieval
{sortilegiu}, e significa “escolha de sortes”, ou seja, escolha de objetos
destinados a predizer o futuro. É associado à bruxaria, à feitiçaria e aos presságios. E enquanto
tentativa de manipular o futuro remete à maquinação e a trama. Na idade média
alguns estatutos da inquisição mencionavam o sortilégio como sendo os delitos
de fazer adivinhações. Antecipar,
pensar e considerar o nosso futuro tem, pois, em nossa cultura, impedimentos,
que remetem estes atos a atos pecaminosos, passíveis de punição e perseguição.
Ser dono de si, pensar com a própria cabeça para lidar com a própria sorte é
quase um sacrilégio, é mexer em terreno perigoso. Quem não se lembra do jogo do
copo adivinhatório, e do clima de mistério e temor que o acompanha? No nosso
imaginário antecipar tem a mão do diabo.
Bonita essa palavra,
sortilégio... interessante como parece indicar que escolher a própria sorte,
definir o próprio futuro, seria um tipo de sacrilégio, um tipo de afronta.
Querer ser soberano de si mesmo e querer, ao mesmo tempo, aplauso, é querer
demais.
A proibição de pensar
trás em si mitos anteriores até à noção de sortilégio. Está no núcleo do mito
do éden. Na Bíblia {Gênesis 2 15/17} vemos: “Tomou, pois, o Senhor Deus o
homem, e colocou-o no paraíso das delícias, para que o cultivasse e guardasse.
E deu-lhe este preceito, dizendo: come de todas as árvores do paraíso, mas não
comas do fruto da árvore da ciência do
bem e do mal; porque, em qualquer dia que comeres dele, morrerás
indubitavelmente”.
Nem mesmo a árvore da
vida, que daria a imortalidade, era de tal maneira proibida. A proibição era da
ciência, do juízo, do pensar. Pensar, considerar, conhecer, ponderar, antecipar
e, por isso mesmo, agir exigitivamente, são interditados. Esses atos levam
necessariamente à diferenciação entre eu e o outro, à soberania, ao pensamento
reflexivo e crítico, ameaçando assim a alienação normal e massificadora da
maioria de nós.
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