17. E Riobaldo fala de quando optamos pela tristeza e morte
“Por que é, então, que deixo de lado? Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom.”
Riobaldo diz aqui de como optamos, às vezes, pela tristeza e morte. E nestes momentos não conseguimos ver o que é bonito e bom. Optar pela morte é uma definição perfeita de necrofilia. Esse conceito, e o conceito irmão de biofilia, foram muito bem elaborados por Erich Fromm, nos extratos selecionados abaixo.
(...)
Dom Miguel de Unamuno, grande filósofo e humanista, em 1936, no início da guerra civil espanhola, responde aos gritos de “viva la muerte!” pronunciados pelos partidários do General Millán Astray, defensor junto com o Generalíssimo Franco da guerra civil, que acabara de discursar na universidade de Salamanca.
“...Acabo de ouvir um grito necrófilo e insensato. E eu, que passei a vida formando paradoxos que despertaram a ira da incompreensão alheia, devo dizer-lhes, como autoridade especializada, que este paradoxo bizarro me é repelente. O general Millán Astray é um aleijado. Digamos isso sem qualquer disfarce. Ele é um inválido da guerra. Assim foi também Cervantes. Infelizmente há demasiados aleijados na Espanha agora. E cedo haverá ainda mais se Deus não vier em nosso auxílio. Dói-me pensar que o General deva ditar o modelo da psicologia da massa. Um aleijado desprovido da grandeza espiritual de um Cervantes está habituado a procurar sinistro alívio provocando mutilação em torno de si”.
Diante destas palavras Millán Astray não pode mais controlar-se, gritando “Abaixo a inteligência! Viva a morte!” E é aplaudido pelos companheiros falangistas. Mas Unamuno não se abateu e continuou:
”Este é o templo do intelecto. E eu sou seu sumo sacerdote. É você que profana seu sagrado recinto. Você ganhará porque dispõe de mais do que suficiente força bruta. Mas você não convencerá. Para convencer é mister persuadir. E a fim de persuadir você precisa do que lhe falta: Razão e direito na luta. Considero fútil exortá-lo a pensar na Espanha. Eu pensei”.
Unamuno ficou preso em casa até a sua morte poucos meses depois.
Necrofilia significa amor aos mortos, literalmente. Em seu grau máximo é uma perversão sexual.
A pessoa com orientação necrófila é atraída e fascinada por tudo o que não é vivo, tudo que está morto: cadáveres, decomposição, fezes, sujeira. Gostam de falar de enterros, doenças e morte. Enchem-se de vida justamente quando podem falar de morte.
Os necrófilos moram no passado, nunca no futuro. Seus sentimentos são essencialmente sentimentais, isto é, alimentam a memória dos sentimentos que foram sentidos ontem. São frios, distantes, devotos da lei e da ordem.
Amam a força, entendida como força para matar. Para eles só há dois sexos: os fortes e os fracos, os poderosos e os impotentes, os matadores e os mortos. Enquanto a vida se caracteriza pelo crescimento, a pessoa necrófila ama tudo que não cresce, tudo que é mecânico. É impelida pelo desejo de transformar o orgânico em inorgânico, de aproximar-se da vida mecanicamente, como se todas as pessoas fossem coisas. Todos os processos, sentimentos e pensamentos vivos são transformados em coisas. Memória em vez de experiência, ter em vez de ser, é o que interessa. O necrófilo pode relacionar-se com um objeto - uma flor ou uma pessoa - somente se possuir esta; por isso uma ameaça às suas posses é uma ameaça a ele mesmo; se perder a posse perderá o contato com o mundo. Ele gosta do controle e, no ato de controlar, ele mata a vida. Teme profundamente a vida por ser esta pela própria natureza desordenada e incontrolável. Para o necrófilo, justiça significa divisão correta, e dispõe-se a matar ou morrer pelo bem daquilo que denomina justiça. “Lei e ordem” para ele são ídolos - tudo que ataca a lei e a ordem é sentido como um ataque satânico contra seus valores supremos.
A pessoa necrófila é atraída pela escuridão e pela noite. Ele quer voltar às trevas do útero e ao passado da existência inorgânica ou animal. É intrinsecamente orientado para o passado, não para o futuro que odeia e teme. Relacionado com isso há seu anelo de certeza. Mas a vida nunca é certa, nunca é previsível, nunca é controlável; a fim de tornar a vida controlável ela tem que ser convertida em morte; a morte é, de falto, a única certeza na vida.
A pessoa necrófila é ordeira, obsessiva e pedante.
A pessoa biófila: sua essência é o amor à vida. É qualidade inerente à toda substancia viva viver e preservar sua existência. “Tudo na medida em que é ele mesmo, esforça-se por persistir em seu próprio ser”. Espinosa, Ética, III, prop. VI.
O pleno desabrochar da biofilia é encontrado na orientação produtiva. A pessoa que ama a vida completamente é atraída pelo processo da vida e do crescimento em todas as esferas. Prefere construir a conservar. É capaz de maravilhar-se, e prefere ver algo novo à segurança de encontrar a confirmação do velho.
A consciência da pessoa biófila não é a de se obrigar a abster-se do mal e fazer o bem. A consciência biófila é motivada por sua atração pela vida e alegria; o esforço moral consiste em fortalecer o aspecto amante da vida em si mesmo. Por essa razão o biófilo não fica com remorso e sentimento de culpa que, afinal de contas, são somente aspectos de autodesprezo e tristeza. Ele se volta rapidamente para a vida e tenta fazer o bem.
As formas puras das orientações necrófilas e biófilas são raras. O que importa é qual das duas tendências é dominante.
A condição mais importante para o desenvolvimento do amor à vida na criança é ela estar com pessoas que amam a vida.
Walt Whitman: “Passar (oh, sempre vivendo) e deixar os cadáveres para trás”.
(...)
Optar pela vida encontra bela expressão no trecho bíblico abaixo, paradoxalmente localizado em “lamentações 3;21”.
“Quero trazer à memória aquilo que me traz esperança.”
E seguimos escolhendo entre o que nos vitaliza ou nos esmorece.
Comentários
Postar um comentário