16. E Riobaldo fala da memória






“Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.”

Todo o livro é Riobaldo contando sua história (estória) para alguém que responde, mas cuja resposta não é transcrita no texto. E agora ele próprio desmente o que contou, duvidando que o que tenha dito seja exato.

O que de nossa memória pode ser dito exato? O que é tudo misturado, experiência, vivencia, sustos e quereres? A memória é fluida e, mesmo que fosse mais constante, ainda assim o que relatamos é o nosso olhar sobre o passado, é o olhar de alguém que já não é o mesmo e agora tem outro ponto de vista. E amanhã terá ainda outro, e depois de amanhã, outro...

Ecléa Bossi nos diz que "Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, "tal como foi", e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelo materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista."

É fácil afirmar que não podemos mudar o passado. Que o que passou, passou, aconteceu, é fato. Mas podemos mudar o que compreendemos do passado, podemos dar outra leitura, é isso é, em sua substância, mudar o passado. Pois o passado passou e o que fica é a leitura que temos dele. 

Quando Maria me procurou estava muito deprimida e queixava-se de que ninguém em sua casa gostava dela. Dizia que seu pai gostava de seu irmão mais velho, que tinha feito engenharia e fazia tudo que o pai achava certo. A mãe gostava da irmã mais nova, que era feminina e delicada, ao contrário de Maria, que tinha o caráter forte do pai. De modo que pra ela sobrava o cachorro. Aliás, nem o Rex, pois ele era da irmã.

Após Maria me contar grande parte da sua história ponderei a ela que em todas as situações realmente graves que o pai tinha vivido, a primeira pessoa a quem ele recorreu foi ela: após sua falência, após grave acidente de carro e após urgente cirurgia cardíaca. Ela ficou surpresa ao constatar isso. Mas contestou sua importância dizendo que o pai nunca era carinhoso com ela. Lembrei-a então que, na verdade, carinhoso como todos são ele nunca seria, rígido e fechado como era. Mas que ele tinha seu jeito próprio de manifestar carinho e afeição. Ao menos duas destas formas eu já conhecia: convidar alguém para ver televisão com ele e um temido beliscão rodado na barriga, que deixava imensa mancha roxa, e que era reservado somente aos momentos que ele estava profundamente amoroso com alguém.
Ela concordou e disse que já tinha sido alvo, por diversas vezes, dos dois procedimentos.
E ressimbolizar a imagem do pai foi muito importante para ela e provocou muitas mudanças em sua vida.

Não podemos mudar o que aconteceu, mas podemos ressimbolizar muitas das coisas que se sucederam em nossas vidas.

Ou, repetindo Rosa: “Mire e veja:  o mais importante e bonito, do mundo, é isto:  que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.  Afinam ou desafinam.  Verdade maior.  É o que a vida me ensinou.  Isso que me alegra, montão.”




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