38. E Riobaldo resolve fazer o pacto mas o sem nome não aparece
Depois de fugir do cerco na fazenda dos Tucanos, se perder com o bando, passar pela vila tomada pela peste e ficar mais de um mês esperando que o bando se recupere de várias doenças, tudo isso sob a liderança errática de Zé Bebelo, Riobaldo resolve fazer o pacto.
Ele sai sozinho à noite, cavalga até uma encruzilhada, nas chamadas
Veredas Mortas, e começa a esperar o Maligno.
Quem é que era o Demo, o Sempre-Sério, o Pai da
Mentira? Ele não tinha carnes de comida da terra, não possuía sangue
derramável. Viesse, viesse, vinha para me obedecer. Trato? Mas trato de iguais
com iguais. Primeiro, eu era que dava a ordem. E ele vinha para supilar o ázimo
do espírito da gente? Como podia? Eu era eu – mais mil vezes – que estava ali,
querendo, próprio para afrontar relance tão desmarcado. Destes meus olhos
esbarrarem num ror de nada.
E a
espera começa a se prolongar. Mas ele não se cansa.
Esperar, era o poder meu; do que eu vinha em cata.
E eu não percebia nada. Isto é, que mesmo com o escuro e as coisas do escuro,
tudo devia de parar por lá, com o estado e aspecto. O chirilil dos bichos.
Arre, quem copia o riso da coruja, o gritado. Arrepia os cabelos das carnes.
E não conheci arriação, nem cansaço.
E não
podia fraquejar ou se prender a pertencencias antigas.
E por isso eu não tinha licença de não me ser, não
tinha os descansos do ar. A minha idéia não fraquejasse. Nem eu pensava em
outras noções. Nem eu queria me lembrar de pertencências, e mesmo, de quase
tudo quanto fosse diverso, eu já estava perdido provisório de lembrança; e da primeira
razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que era que eu queria?
Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa,
a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!
E a
noite seguia. E o demo não vinha. E Riobaldo começa a apelar.
Sapateei, então me assustando de que nem gota de
nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir? Existisse.
Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu
estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às nãovezes, é terrível bonita,
horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar:
– “Lúcifer! Lúcifer!...” – aí eu bramei,
desengolindo.
Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só
– que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão.
Riobaldo
insiste.
– “Lúcifer! Satanás!...”
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio
é? É a gente mesmo, demais.
– “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!”
Mas
ele não aparece. E Riobaldo pensa.
E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem
respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu,
a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que
adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto.
Riobaldo ainda espera pelo fim da noite, que demora a passar. E, apesar do sem nome não ter aparecido, Riobaldo acredita que foi escutado e volta ao bando, transformado. Agora ele tem certezas, demais. Agora ele vai ser o chefe. Não é mais Riobaldo, nem tatarana, seu apelido. Agora ele é Urutu Branco.
Na sociologia poderíamos dizer que esse fenômeno se chama profecia auto-realizável. Na psicologia temos vários nomes, de certa forma semelhantes: viés de confirmação, dissonância cognitiva, auto-sugestão.
Digamos que todos falam da tendência que temos de, ao acreditarmos em algo, acabarmos por provocar ou incentivar seu acontecimento. Imagine alguém que acha que não consegue aprender matemática. Essa pessoa nunca estudará matemática como estuda outras matérias, com o mesmo fôlego e disposição. Na certeza de que não consegue aprender, ao menor obstáculo, abandonará o intento. E depois da prova dirá: “Ta vendo? Olha essa nota baixa! Eu não dou mesmo pra matemática”. E confirmará a certeza subjetiva, realizará a profecia auto-realizável. E não compreenderá que, na verdade, ela poderia sim aprender qualquer matéria, tendo um bom professor, bom material de estudo e disposição de realmente tentar.
Ou imagine alguém que não acredita que o(a) parceiro(a) o(a) ama. Nada que se faça para esse decrente no amor será suficiente para que ele se convença de que é amado. E qualquer sinal insignificante será suficiente para ele julgar que não é amado. E ao fim de provavelmente muitos anos de sofrimento o(a) parceiro(a) desistirá, exausto de tentar, e será obrigado a ouvir: “Tá vendo! Eu sabia que você não me amava!”
Outro exemplo caiu no meu colo durante a última campanha eleitoral para presidente da república. Era impressionante constatar como os integrantes dos dois grupos adversários estavam, em sua grande maioria, impregnados de certezas. Nenhuma réstia de dúvida, nenhuma sombra de inquietação poderia se revelar. Os dois lados olhavam para o grupo adversário como se encarassem o próprio diabo na encruzilhada. E brigas entre irmãos, amigos, colegas, pululavam nos encontros cotidianos ou nas redes sociais.
E de que todos têm tantas certezas? Me aponte um economista que tenha certeza absoluta de sua seara de trabalho. Eu lhe mostrarei ou um fingido (que tenta aparentar uma certeza que não tem) ou um alienado (que nem sabe que não tem segurança nenhuma no que afirma). Duvido mesmo que os próprios candidatos, ao deitarem as respectivas cabeças nos travesseiros, não se corroessem de angústias (Vai que eu ganho… Será se o que penso em fazer vai dar certo? Ainda bem que o tempo de queimar reis ineficazes já passou…).
E foram tantas brigas e confusões. Assustei-me a gritaria vinda da rua, no dia do debate, e postei esse texto:
Urros e gritos vindos da rua, logo após o debate eleitoral. Espíritos inflamados, tal qual num jogo decisivo de futebol. Seriam maravilhosos se representassem tão somente o entusiasmo com as propostas do candidato preferido. Mas indicam mais a direção da intolerância ao berrarem propostas de radicalizações, violências e ditaduras. Mas talvez possa ser melhor contextualizada toda essa radicalização dicotômica se lembrarmos que nossa democracia mal saiu do berço e que, numa democracia tão nova, as almas não estão tão habituadas a pensar as diferenças, aceitar a vitoria alheia, lutar por nova oportunidade de propor outra direção. Nosso país ainda precisa muito amadurecer na tolerância política e isso só é possível com a democracia seguindo seu curso, errático, pedregoso, mas único possível. Uma sociedade mais madura poderia lentamente frutificar, com pessoas mais tolerantes e menos apressadas em classificar seus irmãos em dignidade, pois todos humanos somos, finitos, angustiados e inacabados. O caminho é acidentado pra todos. Mas algumas fontes de água límpida nos aguardam no final, se soubermos esperar.
Enfim, quase todos tomados por dissonâncias cognitivas, Viés de Confirmações, Anti-intracepções de todas as cores e tons.
A vida é farta em falsos problemas que, apesar de falsos, geram consequências verdadeiras.
Comentários
Postar um comentário