4. E Riobaldo pensa na saudade


E Riobaldo fala da saudade pela primeira vez. Estamos na página 49.

“Moço: toda saudade é uma espécie de velhice.”

E pouco adiante Diadorim pergunta pelas lembranças que Riobaldo tem de sua mãe:

“Mas Diadorim mais não supriu o que mais não explicava. E, quem sabe para deduzir da conversa, me perguntou: – “Riobaldo, se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de bondade que era a dela...
Na ação de ouvir, digo ao senhor, tive um menos gosto, na ação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre quando outro quer direto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci disso, o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar esse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assim devia de ser. Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade. E eu nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou, fraseou – só face dum momento – feito grandeza cantável, feito entre madrugar e manhecer. – “... Pois a minha eu não conheci...” – Diadorim prosseguiu no dizer. E disse com curteza simples, igual quisesse falar: barra – beiras – cabeceiras... Fosse cego, de nascença.”

Riobaldo, ao saber que Diadorim não conhecera a própria mãe lembra-se que ele não conheceu o próprio pai:

“Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; quer dizer isso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome dele. Não me envergonho, por ser de escuro nascimento. Orfão de conhecença e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões. Homem viaja, arrancha, passa: muda de lugar e de mulher, algum filho é o perdurado. Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-ogiro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O senhor vê: o Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto: – “Zé-Zim, por que é que você não cria galinhas-d’angola, como todo o mundo faz?” – “Quero criar nada não...” – me deu resposta: – “Eu gosto muito de mudar...””

Riobaldo se irrita com o excesso de mudanças de nomes das cidades, ou talvez diríamos que ele se irrita com o excesso de mudanças da vida.

“Está aí, está com uma mocinha cabocla em casa, dois filhos dela já tem. Belo um dia, ele tora. É assim. Ninguém discrepa. Eu, tantas, mesmo digo. Eu dou proteção. Eu, isto é – Deus, por baixos permeios... Essa não faltou também à minha mãe, quando eu era menino, no sertãozinho de minha terra – baixo da ponta da Serra das Maravilhas, no entre essa e a Serra dos Alegres, tapera dum sítio dito do Caramujo, atrás das fontes do Verde, o Verde que verte no Paracatu. Perto de lá tem vila grande – que se chamou Alegres – o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. Lá como quem diz: então alguém havia de renegar o nome de Belém – de Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, com Nossa Senhora e São José?! Precisava de se ter mais travação. Senhor sabe: Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele... Assim é que digo: eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que não falta, recordo tudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com agrado; mas sem saudade. Porque logo sufusa uma aragem dos acasos.”

Como lidar com a indeterminação do futuro? O futuro não está pré-determinado. Isso é ao mesmo tempo nosso céu e nosso inferno, nossa possibilidade de liberdade e nossa fonte de angústia. Liberdade por que só somos livres porque o futuro está em aberto diante de nós e o que vai ser feito da nossa vida depende daquilo que formos escolhendo. Angústia porque diante destas escolhas tememos. Tememos errar, tememos pecar, tememos escolher e sermos responsabilizados por nossas escolhas. Ou, nas palavras de Ho Chi Mim:

“Há ainda uma coisa estranha nesse mundo,
as pessoas correm para prender suas pernas em grilhões.
Uma vez acorrentadas, podem dormir em paz.
De outra maneira elas não teriam onde descansar a cabeça.”

Diria Hanna Arendt que o recurso diante da imprevisibilidade da ação, da caótica incerteza do futuro, está na capacidade de prometer e cumprir promessas. Esta capacidade teria uma função estabilizadora, possibilitando criar ilhas de segurança no futuro que é um oceano de incertezas.

E Riobaldo volta a falar da saudade:

“Para trás, não há paz. O senhor sabe: a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem chamado Gramacedo... Gente melhor do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes; quando saíram de lá, nos trouxeram junto, minha mãe e eu. Ficamos existindo em território baixio da Sirga, da outra banda, ali onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe. Eu estava com uns treze ou quatorze anos...”(pg 52)

A saudade traz em si um vazio, algo que se interrompeu e que não poderia ter sido interrompido, um vazio sem descanso... “Para trás, não há paz”. Um vazio tenso, ansioso, desesperado, tal como a descrição que Álvaro Andrade Garcia faz do quadro “A saudade”, de Nello Nuno:



“O quadro era quase todo uma mancha verde. Vários tons dessa cor, sobrepostos com vigorosas pinceladas, formavam uma gradação que partia da cor mais escura embaixo à mais clara na parte superior da tela. Dessa forma os planos ficavam aparentemente confusos. Mas a impressão que se tinha era de que o primeiro plano continuava por algo que seria uma janela, dando para montanhas ao fundo. Algumas pinceladas brancas, em forma de retângulos e triângulos, pareciam indicar uma cidade no canto superior esquerdo. Atrás dela, uma porção verde-oliva: as montanhas. No canto superior direito, o verde escuro das porções inferiores dava a impressão de haver algo tenso, inexplicável. Nas proximidades dessa mancha, um velocípede e uma planta davam um ar de familiaridade à cena. Finalmente, algumas pinceladas vermelhas no centro da tela, um pouco à esquerda, formavam algo entre uma grade e as chamas de uma fogueira. Reunindo o branco e o vermelho, em proporções mínimas, diluídos no verde, o artista conseguiu transmitir uma estranha sensação de leveza. Ao mesmo tempo, detalhes como uma fissura ao longo do centro de gravidade da cena ou o imobilismo do velocípede remetiam o observador atento a um estado de primitivismo e até mesmo de ausência.”

Cito aqui um trecho que escrevi sobre a saudade, num escrito que fiz sobre a pressa:

“Há autores que consideram a saudade como sendo decorrente de projetos vitais interrompidos, um tipo de paralisação no passado, pela não realização de algo que era vital para o sujeito. Nesse contexto a pressa não seria um tipo de saudade prospectiva, uma saudade do futuro?

Assim como a nostalgia é a saudade do passado, a ansiedade é a saudade do presente e a pressa é a saudade do futuro.

Temos saudade do passado quando poderíamos ter feito algo naquele tempo, e era muito importante que ao menos tentássemos, mas não o fizemos e então paralisamos, nostálgicos. Ter saudade do futuro, por seu lado, seria decorrente da pressa, do imediatismo de querer chegar ao sucesso futuro antes mesmo que o futuro chegue. O medo de falhar e a vontade de certeza absoluta diante do futuro nos jogam em um estado de pressa, e acabamos aprisionados no futuro, pensando sempre no futuro no afã de conseguir certeza sobre a realização de nossos projetos. E acabamos vivendo de forma provisória, descolados do presente, descolados do que seria possível que fizéssemos já, descolados daquilo que já está ao alcance da nossa mão, de cada pequeno passo que poderíamos dar na nossa auto-construção, com calma e confiança, no desejo de se preparar para o futuro que virá. 

A nostalgia, a saudade do passado, teria assim um vazio em si, daquilo que poderia ter sido e que não foi. A pressa, a saudade do futuro, teria o vazio da ansiedade, daquele que nem vive o seu presente, pois está em aflito e paralisado pelo medo do que virá, nem constrói o seu futuro, pois se precipita na pressa e no imediatismo.”

Tenho uma irmã, muito querida, que por sua vez tinha uma melhor amiga que considero ter sido, certamente, uma das pessoas que ela mais amou na vida. Certo dia, conversando comigo e com minha esposa, minha irmã contou que sua amiga estava medicada com anti-depressivos para tratar de uma enxaqueca. Dissemos que esse tratamento era usual. E ela completou que a amiga também tivera uma paralisia em uma das pernas. Aí ponderamos que seria melhor que ela fizesse uma ressonância ou uma tomografia do crânio, que este sintoma estava fora do esperado para enxaquecas e poderia revelar outros problemas.

A amiga adiou por uns quinze dias esse exame. Estava com medo. Um tempo antes um amigo jogara o taro para ela e, nesta ocasião, por duas vezes sucessivas, saíra a carta da morte. O amigo a tranquilizou, dizendo que isto era simbólico, não literal, e que indicava que ela teria que passar por uma importante provação.

Mas, com receios ela adiou o exame por uns 15 dias. Quando finalmente o fez, descobriu um perigoso aneurisma, com risco de rompimento. Mas foi preciso adiar alguns dias a necessária cirurgia para melhorar um resultado alterado nos exames pré-cirúrgicos. Um ou dois dias depois o aneurisma arrebentou e ela faleceu.

Fiquei muito preocupado com minha irmã. Já tínhamos perdido o pai – ela tinha 6 anos na época – e agora essa morte repentina. Passei a ligar para ela algumas vezes por dia para ter notícias. Três ou quatro dias depois liguei e perguntei como ela estava. Ela disse:

- Agradecendo.

Eu não entendi. E retruquei:

- Agradecendo o que?

- Agradecendo a Deus. Por ter me dado 10 anos com Dodora. Eu poderia não te-la conhecido. E foi tão bom ter sido amiga dela. Ela me ajudou tanto. E sei que eu também ajudei tanto a ela. Deus é muito bom. Me deu uma amizade tão bonita pra viver...

- Gabi – respondi – você está me dizendo uma coisa muito importante. Pela primeira vez, hoje a noite, vou agradecer a Deus os 10 anos que ele me deu com nosso pai. Sempre xinguei os 60 anos que ele me teria roubado. Tenho tanto dele, mesmo me lembrando tão pouco dele... pela primeira vez vou agradecer a graça de ter convivido com ele por tanto tempo... Ah! Tem mais uma coisa: não te ligo mais não tá? Se você precisar, você me liga...

A diferença entre saudade e lembrança é que se a saudade tem um vazio irrecuperável, a lembrança se alimenta da convivência verdadeira e plena que houve. Brincamos entre as duas, hora tendendo mais a uma, hora a outra. Parece-me que minha irmã viveu tão por inteiro as experiências que teve com essa amiga, elas conviveram tão plenamente, que ficaram muito mais lembranças do que saudades, muitos mais sentidos do que vazios dolorosos. O amor é farto, faz-se presença e nutre. Mesmo depois da morte da amiga o amor ainda a preenchia, fazendo-a plena de sentido.

Nesse sentido, de modo diverso ao dito por Riobaldo, é possível ter paz no “para trás”.

Finalizando, com outro trecho do Rosa, presenteado por Wilma Neves:

"Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria... Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinhos... Essa... a alegria que ele quer."

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