27. E Riobaldo volta a falar da dificuldade de se julgar alguém
Então, Riobaldo e Diadorim e mais uns quinze homens
foram vigiar as estradas enquanto Joca Ramiro trava o grosso combate. E não é
que acabam se defrontando com Zé Bebelo, chefe do bando rival?
“Terrível,
tido, por causa da ligeireza com que aquilo veio. Surpresa a gente sempre tem,
o senhor sabe, mesmo em espera: dá a vez, e não se vê, à parva. Não se crê que
é. Tão de repente. O vento vinha bom, da parte d’eles chegarem, de formas que o
galope pronto se ouviu. Escoramos as armas. Assim que eles eram uns vinte.
Passaram o ribeirão, com tanta pressa, que a água se esguichou farta, vero
bonito aquilo no sol. Demos fogo.”
No meio da confusão eis que surge o chefe do bando
adversário.
“Era Zé Bebelo!
Assim eu
condenado para matar.”
Mas Riobaldo gostava de Zé Bebelo. Por ser letrado,
dera aulas para ele. Se iniciou no cangaço no seu bando. E se vê agora
apavorado e dividido. De novo, nosso Riobaldo não está pronto.
“-“Tralha!
Lá vai obra, cão, carujo! Roncolho!” – isto era a voz de Zé Bebelo, gritava. Eu
não gritei. Diadorim também atirava calado. Munição deles – quase nenhuma. Eles
deviam de ser uns quatro, ou três. O cano do meu rifle esquentava demais. –
“Roncolho! Toma...” Um Freitas, nosso, gritou, caiu muito ferido. A bala era de
Zé Bebelo. Atiramos, grosso. Eles respondendo. Respondiam pouco. Deviam de
ser... os quantos? Digo ao senhor: eu gostava de Zé Bebelo. Redigo – que. eu
menos atirava do que pensava. Como era possível, assim, com minha ajuda, a
morte dele? Um homem daquela qualidade, o corpo dele, a idéia dele, tudo que eu
sabia e conhecia. Nessas coisas eu pensei. Sempre – Zé Bebelo – a gente tinha
que pensar. Um homem, coisa fraca em si, macia mesmo, aos pulos de vida e
morte, no meio das duras pedras. Senti, em minha goela. Aquela culpa eu
carregava?”
E Riobaldo tenta arrumar, de supetão, uma saída.
“Arresto
gritei: – “Joca Ramiro quer esse homem vivo! Joca Ramiro quer este homem vivo!
Joca Ramiro faz questão!...” A que nem não sei como tive o repente de isso
dizer – falso, verdadeiro, inventado...
Gritei
firme, repeti.
Os outros
companheiros aceitavam aquilo, diziam também, até João Curiol: – loca Ramiro
quer este homem vivo!” – “É ordem de Joca Ramiro!””
Mas Riobaldo, num átimo, pensa que pode ter feito
besteira...
“Ali Zé
Bebelo eu salvasse. Todos aprovaram. Eu sei, eu sei? O senhor agora vai não me
entendes, O como são as coisas. Todos me aprovaram – e, aí,
extraordinariamente, eu dei um salto de espírito. O que? Mas, então, eu não
tinha pensado tudo, o real?! O que era que eu estava fazendo, que era que eu
estava querendo – que pegassem vivo Zé Bebelo, em carnes e ossos, para depois
judiarem com ele, matarem de outro pior jeito, a fácil?! Minha raiva deu em
mim. Me mordi, me abri, me-amargo. Tanto tudo ia sendo sempre’ por minha culpa!
E daí pedi tudo ao rifle é às cartucheiras. Eu atirava, atirava: queria, por
toda a lei, alcançar um tiro em Zé Bebelo, para acabar com ele de uma vez, sem
martírio de sofrimentos. – “Tu está louco, Riobaldo?” – Diadorim gritou,
rastejando para perto de mim, travando em meu braço. – “Joca Ramiro quer o
homem vivo! Joca Ramiro quer, deu ordem!” – todos agora me gritavam. Assim
contra mim, assim todos. O que eu havia de desmentir? E não vi direito, o fato.
O que vi foi Zé Bebelo aparecendo, de repente, garnisé. O que ele tinha numa
mão, era o punhal; na outra uma garrucha grande, fogo-central. Mas descarregou
a garrucha, atirando no chão, perto dos pés dele, mesmo. Arrancou poeira. Por
trás daquela poeira ele reapareceu, dava pensamento assim – aprumado, teso; de
briga. Lampejou com o punhal, e esperou. Ele mesmo estava querendo morrer à
brava, depressamente. Olhei, olhei. De atirar nele, de todo jeito não tive
coragem. Ah, não tinha! E um dos nossos, não sei quem, jogou o laço. Zé Bebelo
mal ainda bateu com um pé, por se firmar, e caiu, arrastado, voz que gritou: –
“Canalha! Canalha!” Mas todos foram nele, desarmaram do punhal. Eu parei
quieto, vago, se me estranho. Não queria, ah não queria que ele me reconhecesse.”
E Riobaldo pergunta, agoniado.
““Agora
matam? Vão matar?” Mal perguntei. Mas o João Curiol virou e disse: – “Matar
não. Vão dar julgamento...”
–
“Julgamento?” – não ri, não entendi.
– “Aposto
que sei. Aí foi ele mesmo quem quis. O homem estúrdio! Foi defrontar com Joca
Ramiro, e, assim agarrado preso, do jeito como desgraçado estava, brabo gritou:
– Assaca! Ou me matam logo, aqui, ou então eu exijo julgamento correto
legal!... e foi. Aí Joca Ramiroconsentiu, apraz-me, prometeu julgamento já...””
O julgamento acontece. É um dos maiores trechos do
livro. E no seu transcorrer Joca Ramiro pede opinião aos sub-líderes do bando,
e em seguida a quem mais quiser se manifestar. As opiniões são as mais
diversas.
Hermógenes, homem de muitas vinganças, quer amarrar
e sangrar como porco ou passar com os cavalos em cima.
Só Candelário acha que podia resolver na faca, em
briga de duelo. Ou então que se devia soltá-lo para que ele reunisse os seus
homens de novo e “a guerra poder continuar mais, perfeita, diversificada...”
Ricardão concorda com Hermógenes, que Zé Bebelo
veio caçar a eles e que perdeu. E muitos morreram e ficaram feridos. E que
agora chegou a hora da vingança. E que se o bando tivesse perdido a guerra
estariam todos mortos ou presos.
Riobaldo fica triste ao perceber que concorda com
Ricardão.
“Mire e
veja o senhor: e o pior de tudo era que eu mesmo tinha de achar correto o
razoado do Ricardão, reconhecer a verdade daquelas palavras relatadas. Isso
achei, meio me entristeci. Por quê? O justo que era, aquilo estava certo. Mas,
de outros modos – que bem não sei – não estava. Assim, por curta idéia que eu
queira dividir: certo, no que Zé Bebelo tinha feito; mas errado no que Zé
Bebelo era e não era. Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo:
julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.”
Riobaldo já começa a dizer da dificuldade de se
julgar as pessoas, de se ter uma posição definitiva sobre o mérito de cada qual.
Com maestria o autor volta a mostrar Riobaldo lidando com as incertezas. No
momento do aprisionamento de Zé Bebelo, no decorrer do julgamento, em vários
momentos Riobaldo oscilará entre posições diversas. Não é que ele esteja
dividido. Antes ele está sem posição definida, sem a opinião fechada. Riobaldo
assim fica em muitos momentos. E fica angustiado, é verdade. Mas não dividido. A
questão é que ele tem fôlego para esses momentos de incertezas e dúvidas. Mas
também é verdade que ele ainda tem a ilusão que poderá se livrar delas, tem a
ilusão de que com a valentia de Diadorim – que ele busca desesperadamente – ele
conseguirá se livrar do movimento próprio da vida.
É como se o livro nos dissesse: Olha, é mais complexo
do que você gostaria.... Ouse colocar cercas para demarcar com precisão cada
território. Elas cairão por terra. Ouse definir apressadamente quem é bom e
quem é mau, quem merece morrer e quem não merece. Mudarás logo de opinião.
Titão Passos diz então sua opinião, que Zé Bebelo
não tinha crime constável. Que ele quis guerrear e achou guerreiros. Que a
guerra acabou e que agora ali não era um matadouro, que ele não apoiava
matá-lo.
Riobaldo se sente melhor com as palavras de Titão
Passos.
João Goanhá vota como Só Candelário e com
Titão Passos, que não tem crime não. E que não seria o caso de matar.
Joca Ramiro pergunta então aos outros homens se
alguém tinha alguma palavra para dar, de defesa ou de acusação.
Riobaldo quer falar, mas hesita e outro fala em seu
lugar. Quando esse termina Riobaldo demora um tiquinho de novo e outro toma a
frente, novamente. Riobaldo então não marca mais bobeira e fala, finalmente.
–... Eu
conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive do lado dele, nunca menti que não
estive, todos aqui sabem. Saí de lá, meio fugido. Saí, porque quis, e vim
guerrear aqui, com as ordens destes famosos chefes, vós... Da banda de cá, foi
que briguei, e dei mão leal, com meu cano e meu gatilho... Mas, agora, eu
afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que honra o raio da
palavra que dá! Aí. E é chefe jagunço, de primeira, sem ter ruindades em
cabimento, nem matar os inimigos que prende, nem consentir de com eles se
judiar... Isto, afirmo! Vi. Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece um
absolvido escorreito, mesmo não merece de morrer matado à-toa... (...)–... A
guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão. Nela todo o mundo
vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda, constantes anos,
até em outras partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas façanhas...
Pois então, xente, hão de se dizer que aqui na SempreVerde vieram se reunir os
chefes todos de bandos; com seu cabras valentes, montoeira completa, e com o
sobregoverno de Joca Ramiro – só para, no fim, fim, se acabar com um homenzinho
sozinho – se condenar de matar Zé Bebelo, o quanto fosse um boi de corte? Um
fato assim é honra? Ou é vergonha?...”
A fala de Riobaldo surte efeito e vários concordam
com ele, que ainda coloca mais alguns argumentos.
Pois então Zé Bebelo teve ordem para falar e se
defender.
“– “...
Agradeço os que por mim bem falaram e puniram...Vou depor. Vim para o Norte,
pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha guerra... Sou
crescido valente, contra homens valentes quis dar o combate. Não está certo?
Meu exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem- Bem, Só
Candelário!... e tantos outros afamados chefes, uns aqui presentes, outros que
não estão... Briguei muito mediano, não obrei injustiça nem ruindades nenhumas;
nunca disso me reprovam. Desfaço de covardes e de biltragem! Tenho nada ou
pouco com o Governo, não nasci gostando de soldados... Coisa que eu queria era
proclamar outro governo, mas com a ajuda, depois, de vós, também. Estou vendo
que a gente só brigou por um mal-entendido, maximé. Não obedeço ordens de
chefes políticos. Se eu alcançasse, entrava para a política, mas pedia ao
grande Joca Ramiro que encaminhasse seus brabos cabras para votarem em mim,
para deputado... Ah, este Norte em remanência: progresso forte, fartura para
todos, a alegria nacional! Mas, no em mesmo, o afã de política, eu tive e não
tenho mais... A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando
conta dele a dentro... Agora perdi. Estou preso. Mudei para adiante! Perdi –
isto é – por culpa de má-hora de sorte; o que não creio. Altos descuidos
alheios... De ter sido guardado prisioneiro vivo, e estar defronte de
julgamento, isto é que eu louvo, e que me praz. Prova de que vós nossos
jagunços do Norte são civilizados de calibre: que não matam com o distrair de
mão um qualquer inimigo pegado. Isto aqui não são essas estrebarias... Estou a
cobro de desordens malinas. Estimei. Dou viva Joca Ramiro, seus outros chefes,
comandantes de seus terços. E viva sua valente jagunçada! Mas, homem sou. Sou
de altas cortesias. Só que medo não tenho; nunca tive, no travável...” Anda que
fez um gesto bonito. Assaz, aí, se espiritou. Ao que, de vez, foi grandeúdo: –
“... Uê, vim guerrear, de peito aberto, com estrondos. Não vim socolor de
disfarces, com escondidos e logro. Perdi, por um desguardo. Não por má chefia
minha! Não devia de ter querido contra Joca Ramiro dar combate, não devia-de.
Não confesso culpa nem retrauta, porque minha regra é: tudo que fiz, valeu por
bem feito. É meu consueto. Mas, hoje, sei: não deviade. Isto é: depende da
sentença que vou ter, neste nobre julgamento. Julgamento, digo, que com arma
ainda na mão pedi; e que deste grande Joca Ramiro mereci, de sua alta
fidalguia... Julgamento – isto, é o que a gente tem de sempre pedir! Para quê?
Para não se ter medo! É o que comigo é. Careci deste julgamento, só por verem
que não tenho medo... Se a condena for às ásperas, com a minha coragem me
amparo. Agora, se eu receber sentença salva, com minha coragem vos agradeço.
Perdão, pedir, não peço: que eu acho que quem pede, para escapar com vida,
merece é meia-vida e dobro de morte. Mas agradeço, fortemente. Também não posso
me oferecer de servir debaixo d’armas de Joca Ramiro – porque tanto era honra,
mas não condizia bem. Mas minha palavra dando, minha palavra as mil vezes
cumpro! Zé Bebelo nunca roeu nem torceu. E, sem mais por dizer, espero vossa
distinta sentença. Chefe. Chefes.””
E Joca Ramiro, chefe maior, finalmente decide.
“– “O
julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra.
Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro.
A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?”
–
“Reconheço” – Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz, ele já descabelado demais.
Se fez que as três vezes, até: – “Reconheço. Reconheço! Reconheço...” –
estreques estalos de gatilho e pinguelo – o que se diz: essas detonações.
– “Bem. Se
eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe a palavra, e vai?”
Zé Bebelo demorou resposta. Mas foi só minutozinho. E, pois:
– “A
palavra e vou, Chefe. Só solicito que o senhor determine minha ida em modo
correto, como compertence.”
– “A
falando?”
– “Que: se
ainda tiver homens meus vivos, presos também por aí, que tenham ordem de
soltura, ou licença de vir comigo, igualmente...”
Ao que
Joca Ramiro disse: – “Topo. Topo.” – “ ... E que, tendo nenhum, eu viaje daqui
sem vigia nenhuma, nem guarda, mas o senhor me fornecendo animal-desela
arreado, e as minhas armas, ou boas outras, com alguma munição, mais o de-comer
para os três dias, legal...”
Ao que aí Joca Ramiro assim três vezes: – “Topo. Topo!”
– “...
Então, honrado vou. Mas, agora, com sua licença, a pergunta faço: pelo quanto
tempo eu tenho de estipular, sem voltar neste Estado, nem na Bahia? Por uns
dois, três anos?”
– “Até
enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem...” – Joca Ramiro ai disse, em
final. E se levantou, num de repente. Ah, quando ele levantava, puxava as
coisas consigo, parecia – as pessoas, o chão, as árvores desencontradas. E
todos também, ao em um tempo – feito um boi só, ou um gado em círculos, ou um
relincho de cavalo. Levantaram campo. Reinou zoeira de alegria: todo o mundo já
estava com cansaço de dar julgamento, e se tinha alguma certa fome.”
O julgamento de Zé Bebelo ocupa um lugar central na
narrativa do livro. É dos trechos mais extensos, o que não deve ser considerado
aleatório no caso de João Guimarães Rosa. Até o julgamento a narrativa vai e
volta no tempo, não obedecendo uma ordem cronológica. Após o julgamento os
fatos são narrados cronologicamente. E vamos juntos, acompanhando a epopeia de
Riobaldo.
Então, Riobaldo e Diadorim e mais uns quinze homens
foram vigiar as estradas enquanto Joca Ramiro trava o grosso combate. E não é
que acabam se defrontando com Zé Bebelo, chefe do bando rival?
“Terrível,
tido, por causa da ligeireza com que aquilo veio. Surpresa a gente sempre tem,
o senhor sabe, mesmo em espera: dá a vez, e não se vê, à parva. Não se crê que
é. Tão de repente. O vento vinha bom, da parte d’eles chegarem, de formas que o
galope pronto se ouviu. Escoramos as armas. Assim que eles eram uns vinte.
Passaram o ribeirão, com tanta pressa, que a água se esguichou farta, vero
bonito aquilo no sol. Demos fogo.”
No meio da confusão eis que surge o chefe do bando
adversário.
“Era Zé Bebelo!
Assim eu
condenado para matar.”
Mas Riobaldo gostava de Zé Bebelo. Por ser letrado,
dera aulas para ele. Se iniciou no cangaço no seu bando. E se vê agora
apavorado e dividido. De novo, nosso Riobaldo não está pronto.
“-“Tralha!
Lá vai obra, cão, carujo! Roncolho!” – isto era a voz de Zé Bebelo, gritava. Eu
não gritei. Diadorim também atirava calado. Munição deles – quase nenhuma. Eles
deviam de ser uns quatro, ou três. O cano do meu rifle esquentava demais. –
“Roncolho! Toma...” Um Freitas, nosso, gritou, caiu muito ferido. A bala era de
Zé Bebelo. Atiramos, grosso. Eles respondendo. Respondiam pouco. Deviam de
ser... os quantos? Digo ao senhor: eu gostava de Zé Bebelo. Redigo – que. eu
menos atirava do que pensava. Como era possível, assim, com minha ajuda, a
morte dele? Um homem daquela qualidade, o corpo dele, a idéia dele, tudo que eu
sabia e conhecia. Nessas coisas eu pensei. Sempre – Zé Bebelo – a gente tinha
que pensar. Um homem, coisa fraca em si, macia mesmo, aos pulos de vida e
morte, no meio das duras pedras. Senti, em minha goela. Aquela culpa eu
carregava?”
E Riobaldo tenta arrumar, de supetão, uma saída.
“Arresto
gritei: – “Joca Ramiro quer esse homem vivo! Joca Ramiro quer este homem vivo!
Joca Ramiro faz questão!...” A que nem não sei como tive o repente de isso
dizer – falso, verdadeiro, inventado...
Gritei
firme, repeti.
Os outros
companheiros aceitavam aquilo, diziam também, até João Curiol: – loca Ramiro
quer este homem vivo!” – “É ordem de Joca Ramiro!””
Mas Riobaldo, num átimo, pensa que pode ter feito
besteira...
“Ali Zé
Bebelo eu salvasse. Todos aprovaram. Eu sei, eu sei? O senhor agora vai não me
entendes, O como são as coisas. Todos me aprovaram – e, aí,
extraordinariamente, eu dei um salto de espírito. O que? Mas, então, eu não
tinha pensado tudo, o real?! O que era que eu estava fazendo, que era que eu
estava querendo – que pegassem vivo Zé Bebelo, em carnes e ossos, para depois
judiarem com ele, matarem de outro pior jeito, a fácil?! Minha raiva deu em
mim. Me mordi, me abri, me-amargo. Tanto tudo ia sendo sempre’ por minha culpa!
E daí pedi tudo ao rifle é às cartucheiras. Eu atirava, atirava: queria, por
toda a lei, alcançar um tiro em Zé Bebelo, para acabar com ele de uma vez, sem
martírio de sofrimentos. – “Tu está louco, Riobaldo?” – Diadorim gritou,
rastejando para perto de mim, travando em meu braço. – “Joca Ramiro quer o
homem vivo! Joca Ramiro quer, deu ordem!” – todos agora me gritavam. Assim
contra mim, assim todos. O que eu havia de desmentir? E não vi direito, o fato.
O que vi foi Zé Bebelo aparecendo, de repente, garnisé. O que ele tinha numa
mão, era o punhal; na outra uma garrucha grande, fogo-central. Mas descarregou
a garrucha, atirando no chão, perto dos pés dele, mesmo. Arrancou poeira. Por
trás daquela poeira ele reapareceu, dava pensamento assim – aprumado, teso; de
briga. Lampejou com o punhal, e esperou. Ele mesmo estava querendo morrer à
brava, depressamente. Olhei, olhei. De atirar nele, de todo jeito não tive
coragem. Ah, não tinha! E um dos nossos, não sei quem, jogou o laço. Zé Bebelo
mal ainda bateu com um pé, por se firmar, e caiu, arrastado, voz que gritou: –
“Canalha! Canalha!” Mas todos foram nele, desarmaram do punhal. Eu parei
quieto, vago, se me estranho. Não queria, ah não queria que ele me reconhecesse.”
E Riobaldo pergunta, agoniado.
““Agora
matam? Vão matar?” Mal perguntei. Mas o João Curiol virou e disse: – “Matar
não. Vão dar julgamento...”
–
“Julgamento?” – não ri, não entendi.
– “Aposto
que sei. Aí foi ele mesmo quem quis. O homem estúrdio! Foi defrontar com Joca
Ramiro, e, assim agarrado preso, do jeito como desgraçado estava, brabo gritou:
– Assaca! Ou me matam logo, aqui, ou então eu exijo julgamento correto
legal!... e foi. Aí Joca Ramiroconsentiu, apraz-me, prometeu julgamento já...””
O julgamento acontece. É um dos maiores trechos do
livro. E no seu transcorrer Joca Ramiro pede opinião aos sub-líderes do bando,
e em seguida a quem mais quiser se manifestar. As opiniões são as mais
diversas.
Hermógenes, homem de muitas vinganças, quer amarrar
e sangrar como porco ou passar com os cavalos em cima.
Só Candelário acha que podia resolver na faca, em
briga de duelo. Ou então que se devia soltá-lo para que ele reunisse os seus
homens de novo e “a guerra poder continuar mais, perfeita, diversificada...”
Ricardão concorda com Hermógenes, que Zé Bebelo
veio caçar a eles e que perdeu. E muitos morreram e ficaram feridos. E que
agora chegou a hora da vingança. E que se o bando tivesse perdido a guerra
estariam todos mortos ou presos.
Riobaldo fica triste ao perceber que concorda com
Ricardão.
“Mire e
veja o senhor: e o pior de tudo era que eu mesmo tinha de achar correto o
razoado do Ricardão, reconhecer a verdade daquelas palavras relatadas. Isso
achei, meio me entristeci. Por quê? O justo que era, aquilo estava certo. Mas,
de outros modos – que bem não sei – não estava. Assim, por curta idéia que eu
queira dividir: certo, no que Zé Bebelo tinha feito; mas errado no que Zé
Bebelo era e não era. Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo:
julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.”
Riobaldo já começa a dizer da dificuldade de se
julgar as pessoas, de se ter uma posição definitiva sobre o mérito de cada qual.
Com maestria o autor volta a mostrar Riobaldo lidando com as incertezas. No
momento do aprisionamento de Zé Bebelo, no decorrer do julgamento, em vários
momentos Riobaldo oscilará entre posições diversas. Não é que ele esteja
dividido. Antes ele está sem posição definida, sem a opinião fechada. Riobaldo
assim fica em muitos momentos. E fica angustiado, é verdade. Mas não dividido. A
questão é que ele tem fôlego para esses momentos de incertezas e dúvidas. Mas
também é verdade que ele ainda tem a ilusão que poderá se livrar delas, tem a
ilusão de que com a valentia de Diadorim – que ele busca desesperadamente – ele
conseguirá se livrar do movimento próprio da vida.
É como se o livro nos dissesse: Olha, é mais complexo
do que você gostaria.... Ouse colocar cercas para demarcar com precisão cada
território. Elas cairão por terra. Ouse definir apressadamente quem é bom e
quem é mau, quem merece morrer e quem não merece. Mudarás logo de opinião.
Titão Passos diz então sua opinião, que Zé Bebelo
não tinha crime constável. Que ele quis guerrear e achou guerreiros. Que a
guerra acabou e que agora ali não era um matadouro, que ele não apoiava
matá-lo.
Riobaldo se sente melhor com as palavras de Titão
Passos.
João Goanhá vota como Só Candelário e com
Titão Passos, que não tem crime não. E que não seria o caso de matar.
Joca Ramiro pergunta então aos outros homens se
alguém tinha alguma palavra para dar, de defesa ou de acusação.
Riobaldo quer falar, mas hesita e outro fala em seu
lugar. Quando esse termina Riobaldo demora um tiquinho de novo e outro toma a
frente, novamente. Riobaldo então não marca mais bobeira e fala, finalmente.
–... Eu
conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive do lado dele, nunca menti que não
estive, todos aqui sabem. Saí de lá, meio fugido. Saí, porque quis, e vim
guerrear aqui, com as ordens destes famosos chefes, vós... Da banda de cá, foi
que briguei, e dei mão leal, com meu cano e meu gatilho... Mas, agora, eu
afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que honra o raio da
palavra que dá! Aí. E é chefe jagunço, de primeira, sem ter ruindades em
cabimento, nem matar os inimigos que prende, nem consentir de com eles se
judiar... Isto, afirmo! Vi. Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece um
absolvido escorreito, mesmo não merece de morrer matado à-toa... (...)–... A
guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão. Nela todo o mundo
vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda, constantes anos,
até em outras partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas façanhas...
Pois então, xente, hão de se dizer que aqui na SempreVerde vieram se reunir os
chefes todos de bandos; com seu cabras valentes, montoeira completa, e com o
sobregoverno de Joca Ramiro – só para, no fim, fim, se acabar com um homenzinho
sozinho – se condenar de matar Zé Bebelo, o quanto fosse um boi de corte? Um
fato assim é honra? Ou é vergonha?...”
A fala de Riobaldo surte efeito e vários concordam
com ele, que ainda coloca mais alguns argumentos.
Pois então Zé Bebelo teve ordem para falar e se
defender.
“– “...
Agradeço os que por mim bem falaram e puniram...Vou depor. Vim para o Norte,
pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha guerra... Sou
crescido valente, contra homens valentes quis dar o combate. Não está certo?
Meu exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem- Bem, Só
Candelário!... e tantos outros afamados chefes, uns aqui presentes, outros que
não estão... Briguei muito mediano, não obrei injustiça nem ruindades nenhumas;
nunca disso me reprovam. Desfaço de covardes e de biltragem! Tenho nada ou
pouco com o Governo, não nasci gostando de soldados... Coisa que eu queria era
proclamar outro governo, mas com a ajuda, depois, de vós, também. Estou vendo
que a gente só brigou por um mal-entendido, maximé. Não obedeço ordens de
chefes políticos. Se eu alcançasse, entrava para a política, mas pedia ao
grande Joca Ramiro que encaminhasse seus brabos cabras para votarem em mim,
para deputado... Ah, este Norte em remanência: progresso forte, fartura para
todos, a alegria nacional! Mas, no em mesmo, o afã de política, eu tive e não
tenho mais... A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando
conta dele a dentro... Agora perdi. Estou preso. Mudei para adiante! Perdi –
isto é – por culpa de má-hora de sorte; o que não creio. Altos descuidos
alheios... De ter sido guardado prisioneiro vivo, e estar defronte de
julgamento, isto é que eu louvo, e que me praz. Prova de que vós nossos
jagunços do Norte são civilizados de calibre: que não matam com o distrair de
mão um qualquer inimigo pegado. Isto aqui não são essas estrebarias... Estou a
cobro de desordens malinas. Estimei. Dou viva Joca Ramiro, seus outros chefes,
comandantes de seus terços. E viva sua valente jagunçada! Mas, homem sou. Sou
de altas cortesias. Só que medo não tenho; nunca tive, no travável...” Anda que
fez um gesto bonito. Assaz, aí, se espiritou. Ao que, de vez, foi grandeúdo: –
“... Uê, vim guerrear, de peito aberto, com estrondos. Não vim socolor de
disfarces, com escondidos e logro. Perdi, por um desguardo. Não por má chefia
minha! Não devia de ter querido contra Joca Ramiro dar combate, não devia-de.
Não confesso culpa nem retrauta, porque minha regra é: tudo que fiz, valeu por
bem feito. É meu consueto. Mas, hoje, sei: não deviade. Isto é: depende da
sentença que vou ter, neste nobre julgamento. Julgamento, digo, que com arma
ainda na mão pedi; e que deste grande Joca Ramiro mereci, de sua alta
fidalguia... Julgamento – isto, é o que a gente tem de sempre pedir! Para quê?
Para não se ter medo! É o que comigo é. Careci deste julgamento, só por verem
que não tenho medo... Se a condena for às ásperas, com a minha coragem me
amparo. Agora, se eu receber sentença salva, com minha coragem vos agradeço.
Perdão, pedir, não peço: que eu acho que quem pede, para escapar com vida,
merece é meia-vida e dobro de morte. Mas agradeço, fortemente. Também não posso
me oferecer de servir debaixo d’armas de Joca Ramiro – porque tanto era honra,
mas não condizia bem. Mas minha palavra dando, minha palavra as mil vezes
cumpro! Zé Bebelo nunca roeu nem torceu. E, sem mais por dizer, espero vossa
distinta sentença. Chefe. Chefes.””
E Joca Ramiro, chefe maior, finalmente decide.
“– “O
julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra.
Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro.
A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?”
–
“Reconheço” – Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz, ele já descabelado demais.
Se fez que as três vezes, até: – “Reconheço. Reconheço! Reconheço...” –
estreques estalos de gatilho e pinguelo – o que se diz: essas detonações.
– “Bem. Se
eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe a palavra, e vai?”
Zé Bebelo demorou resposta. Mas foi só minutozinho. E, pois:
– “A
palavra e vou, Chefe. Só solicito que o senhor determine minha ida em modo
correto, como compertence.”
– “A
falando?”
– “Que: se
ainda tiver homens meus vivos, presos também por aí, que tenham ordem de
soltura, ou licença de vir comigo, igualmente...”
Ao que
Joca Ramiro disse: – “Topo. Topo.” – “ ... E que, tendo nenhum, eu viaje daqui
sem vigia nenhuma, nem guarda, mas o senhor me fornecendo animal-desela
arreado, e as minhas armas, ou boas outras, com alguma munição, mais o de-comer
para os três dias, legal...”
Ao que aí Joca Ramiro assim três vezes: – “Topo. Topo!”
– “...
Então, honrado vou. Mas, agora, com sua licença, a pergunta faço: pelo quanto
tempo eu tenho de estipular, sem voltar neste Estado, nem na Bahia? Por uns
dois, três anos?”
– “Até
enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem...” – Joca Ramiro ai disse, em
final. E se levantou, num de repente. Ah, quando ele levantava, puxava as
coisas consigo, parecia – as pessoas, o chão, as árvores desencontradas. E
todos também, ao em um tempo – feito um boi só, ou um gado em círculos, ou um
relincho de cavalo. Levantaram campo. Reinou zoeira de alegria: todo o mundo já
estava com cansaço de dar julgamento, e se tinha alguma certa fome.”
O julgamento de Zé Bebelo ocupa um lugar central na
narrativa do livro. É dos trechos mais extensos, o que não deve ser considerado
aleatório no caso de João Guimarães Rosa. Até o julgamento a narrativa vai e
volta no tempo, não obedecendo uma ordem cronológica. Após o julgamento os
fatos são narrados cronologicamente. E vamos juntos, acompanhando a epopeia de
Riobaldo.
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