26. E Riobaldo fala sobre a pressa
Riobaldo e Diadorim estão agora junto ao bando de Sô
Candelário, homem dos mais valentes.
“Homem
forçoso, homem de fúria. Mandou que mandava. Em hora de fogo, pulava à frente
de todos, bramava o burro. Tomou a chefia geral, debaixo dele o Hermógenes
parecia um diabo coitado. Só Candelário era o para enfrentar Zé Bebelo.
Salvante que seria para tudo.”
E juntos todos vão ao encontro do grande líder, Joca
Ramiro. E juntos todos irão para a guerra. Com Joca Ramiro a frente a vitória é
certa.
“Desde
ver, a figura dele tinha parado no meio da gente, noutra coisa não se falava.
Aí em festa feita a gente tramava nas armas: Joca Ramiro entrava direto em
combate, então ia ser o fim da guerra!”
Mas Sô Candelário, o mais valente dos valentes, não
poderá ir direto ao calor da batalha. Joca Ramiro não quer.
““Só
Candelário queria ir também, mas teve de aceitar ordem de ficar...” – Diadorim
me explicou. Segundo disse – que Só Candelário, por aquela ânsia e soência, de
avançar, a avançar, agora podia desequilibrar a boa regra de tudo. Seria para
ficar de espera, tapando o mundo aos que aqui o mundo quisessem. Assim, mais,
Joca Ramiro tinha mandado: que nosso grupo se repartisse, em aos três ou quatro
piquetes, para valer de vigiar bem os vaus e suas estradas.”"
Sô Candelário trazia em si a desmedida da valentia. E
Joca Ramiro disso sabia. Riobaldo explica.
“Mas
o Alaripe foi que me contou, uma coisa que todos sabiam e nela falavam. Que Só
Candelário caçava era a morte. E bebia, quase constantemente, sua forte
cachaça. Por quê? Digo o senhor: ele tinha medo de estar com o mal-de-lázaro.
Pai dele tinha adoecido disso, e os irmãos dele também, depois e depois, os que
eram mais velhos. Lepra – mais não se diz: ai é que o homem lambe a maldição de
castigo. Castigo, de quê? Disso é que decerto sucedia um ódio em Só Candelário.
Vivia em fogo de idéia. Lepra demora tempos, retardada no corpo, de repente é
que se brota; em qualquer hora, aquilo podia variar de aparecer. Só Candelário
tinha um sestro: não esbarrava de arregaçar a camisa, espiar seus braços, a
ponta do cotovelo, coçava a pele, de em sangue se arranhar. E carregava
espelhinho na algibeira, nele furtava sempre uma olhada. Danado de tudo. A
gente sabia que ele tomava certos remédios – acordava com o propor da aurora, o
primeiro, bebia a triaga e saía para lavar o corpo, em poço, para a beira do
córrego ia indo, nu, nu, feito perna de jaburu. Aos dava. Hoje, que penso, de
todas as pessoas Só Candelário é o que mais entendo. As favas fora, ele
perseguia o morrer, por conta futura da lepra; e, no mesmo do tempo, do mesmo
jeito, forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só dava resultado que
mandava mortes, e matava. Doido, era? Quem não é, mesmo eu ou o senhor? Mas,
aquele homem, eu estimava. Porque, ao menos, ele, possuía o sabido motivo.”
A certeza da morte terrível, da doença estigmatizante,
fazia com que Sô Candelário se tornasse um homem imprudente. A pressa o tomava
( E Guimarães Rosa, no seu livro anterior, “Sagarana”, já dissera que medo e
pressa são praticamente iguais) e ele avançava sem cuidado na direção daquilo
que julgava ser seu fim inevitável. Toda pressa traz em si bastante certeza. E
nos cega para a realidade. Com pressa não conseguimos esperar que ela se
manifeste, se revele por inteiro. E nos perdemos em precipitações.
Joca Ramiro, em sua grande sabedoria, julga por bem não
levar Sô Candelário para a frente da guerra.
Temos em nossa cultura outro exemplo de pressa levando à
falsa consciência e à decisão equivocada.
Trata-se do autor da frase abaixo, a nós presenteada por
Públio Athayde.
"Tenho medo da morte e da dor, mas
convivo bem com isso. O medo me fascina." Ayrton Senna
Em trabalho sobre a pressa, analiso os acontecimentos que
culminaram com seu falecimento.
“Senna foi eleito recentemente o maior piloto de todos os
tempos. Apesar de possuir somente 3 títulos mundiais, sendo sobrepujado por
Schumacher e Fangio, com 7 e 5 títulos, respectivamente, sua qualidade técnica
ainda é lembrada por todos aqueles que gostam de corridas de carros.
Sua morte trágica, ocorrida durante a prova em Imola, em
1994, traz consigo considerações importantes.
Naquele ano muitas mudanças foram realizadas nos carros
da fórmula 1. Os aerofólios estavam mais estreitos do que no ano anterior,
assim como os pneus. O controle de tração, os freios ABS e a suspensão ativa,
recursos tecnológicos que facilitavam a dirigibilidade dos veículos, também
foram proibidos no ano anterior. O objetivo era baratear os custos das equipes
e deixar os carros mais lentos e com mais possibilidades de ultrapassagens por
prova. Mas os carros não ficaram mais lentos. Senna bateu o recorde de
velocidade da pista no fim de semana fatal. Os motores aspirados usados na
época já estavam mais velozes que os motores turbo do passado, motores esses
que haviam sido proibidos justamente por serem velozes demais.
As queixas de que os carros estavam mais inseguros apesar
de continuarem excessivamente velozes eram constantes. O próprio Senna havia
apontado esse problema ao reclamar: “Os carros estão rápidos demais e difíceis
de controlar”.
No primeiro dia de treinos Senna ficou transtornado após
acidente com o piloto Rubens Barrichelo. Este, motivado pelo primeiro pódio da
carreira conseguido na corrida anterior, exagera um átimo na aceleração de seu
carro e decola sobre uma zebra da pista,
bate e salta acima dos pneus de proteção e se arrebenta numa tela protetora.
Quase que milagrosamente sobrevive com poucas lesões.
No dia seguinte Senna assistiu pelo monitor dos boxes ao
acidente que matou o piloto Ratzenberger. Ao ver as equipes de socorro
iniciarem uma massagem cardíaca ainda no asfalto do circuito Senna se
descontrolou, colocou as mãos no rosto e chorou convulsivamente durante 15
minutos.
Após 12 anos sem um acidente fatal na formula 1 um piloto
quase morre e outro falece na pista. E no mesmo fim de semana Senna também
morreria.
A morte de Ratzenberger levou Senna a liderar um
movimento para a suspensão dos treinos ou até mesmo da corrida. Ao falar ao
telefone com a namorada, após ir ao local do acidente fatal do piloto
austríaco, Senna afirmou que não iria mais correr de carro no dia seguinte.
Mais tarde, já à noite, mais calmo, falou para a namorada não se preocupar. Quando
questionado por ela, afinal afirmara que não correria, disse: “Não se esqueça
de uma coisa, eu sou forte, muito forte”.
Pouco antes da corrida, na hora da concentração, ficou 5
minutos parado olhando o carro. Seu comportamento incomum chamou a atenção de
jornalistas já acostumados com sua rotina.
Por que Senna mudou de opinião e decidiu correr? Se havia
um piloto que reunisse em si todas as qualidades técnicas para julgar os
absurdos que estavam ocorrendo, este piloto era ele. Ele chegou a comunicar que
não correria ao seu chefe, Frank Willians, que autorizou o que ele decidisse.
Mas parece que de alguma forma Senna foi se acalmando e à noite já tinha mudado
de opinião e decidido correr.
Decisão diferente tomou Emerson Fittipaldi, em 1975, no
GP da Espanha. Ao se prepararem para iniciar os treinos para a prova os pilotos
perceberam que as condições de segurança da pista eram sofríveis,
particularmente no que dizia respeito aos guard-rails, precariamente
instalados. Emerson liderou um movimento pela não realização da prova. As
pressões e ameaças dos organizadores, dirigentes e patrocinadores foram
imensas, algumas providências paliativas foram tomadas e a maioria dos pilotos
concordou em correr.
Emerson, ameaçado até de exclusão definitiva da Fórmula
1, simulou problemas mecânicos para não se classificar e não correu. Durante a
prova grave acidente matou 5 pessoas, quatro delas instantaneamente, e deixou
muitos feridos.
Neste caso os fatos posteriores deram razão a Fittipaldi.
Mas quando ele decidiu não participar ele correu o risco de que a prova
transcorresse sem incidentes. E aí ele seria criticado, chamado de piloto
covarde, desprovido da coragem necessária à profissão. Talvez pelo fato de ser
jovem, recém tornado campeão mundial, Emerson não se abalou e manteve sua
decisão.
Ayrton Senna já não era tão moço, tinha então 34 anos e o
campeonato de 1994 estava sendo o pior de sua vida. Foi a primeira vez que ele não
marcou nenhum ponto nas duas primeiras corridas. Rodou na primeira prova e foi
tirado da pista na primeira curva da prova seguinte. Schumacher, jovem
revelação, estava 20 pontos à sua frente. Como poderia deixar de correr? Os
outros diriam que ele já estava ficando velho, que perdera o arrojo, que já não
tinha a coragem que teve em algum momento de sua vida, que devia agora dar
espaço para a nova geração de pilotos que surgia.
Alguns desses pensamentos devem ter passado pela cabeça
de Senna durante a tarde da véspera da prova. De alguma forma ele anestesiou
sua compreensão inicial, de que não deveria correr no dia seguinte. E a noite
comunicou a namorada que participaria da prova.
Sabemos hoje que o principal elemento causador do seu
acidente foi o rompimento da barra de direção de seu Willians. Ele inclusive já
havia se queixado que o carro trepidava, o que talvez pudesse ser causado pela
fadiga do material. Mas este fato não invalida o quadro de risco muito
aumentado de todos os automóveis participantes, risco esse causado
primordialmente pelas mudanças realizadas nos veículos neste ano. Pois cabe
lembrar neste GP, o primeiro de alta velocidade do ano, Barrichello se
acidentou muito gravemente e Ratzenberger e Senna morreram. Além disso, na
corrida seguinte, já em um circuito de baixa velocidade, mais um piloto se
acidentaria com gravidade, ficando muitos dias em coma.
E Senna percebeu os absurdos, tomou a decisão adequada,
mas foi lentamente se anestesiando e tragicamente mudou de opinião.
Conan Doyle, através de seu famoso personagem Sherlock
Holmes, no romance “A cidade do medo”, diz de “Um homem que não pode falhar:
uma pessoa cuja posição depende do fato que tudo que faz deve dar certo”. Esse
homem parece-se com Ayrton Senna. Um homem que não pode falhar está condenado à
pressa e ao medo. O medo de falhar o
leva à impulsividade e ao medo de parar e perceber-se falho ou errôneo.
É possível ultrapassar quem tem esperanças, projetos, e
caminha passo a passo, ou engatinha palmo a palmo, na direção daquilo que lhe é
vital? É possível ultrapassar quem é humilde e sabe reconhecer o que sabe e o
que não sabe?”
Há autores que consideram a saudade como sendo
decorrente de projetos vitais interrompidos, um tipo de paralisação no passado,
pela não realização de algo que era vital para o sujeito. Nesse contexto a
pressa não seria um tipo de saudade prospectiva, uma saudade do futuro?
Assim como a nostalgia é a saudade do passado, a
ansiedade é a saudade do presente e a pressa é a saudade do futuro.
Temos saudade do passado quando poderíamos ter
feito algo naquele tempo, e era muito importante que ao menos tentássemos, mas
não o fizemos e então paralisamos, nostálgicos. Ter saudade do futuro, por seu
lado, seria decorrente da pressa, do imediatismo de querer chegar ao sucesso
futuro antes mesmo que o futuro chegue. O medo de falhar e a vontade de certeza
absoluta diante do futuro nos jogam em um estado de pressa, e acabamos
aprisionados no futuro, pensando sempre no futuro no afã de conseguir certeza
sobre a realização de nossos projetos. E acabamos vivendo de forma provisória,
descolados do presente, descolados do que seria possível que fizéssemos já,
descolados daquilo que já está ao alcance da nossa mão, de cada pequeno passo
que poderíamos dar na nossa autoconstrução, com calma e confiança, no desejo de
se preparar para o futuro que virá.
A nostalgia, a saudade do passado, teria assim um
vazio em si, daquilo que poderia ter sido e que não foi. A pressa, a saudade do
futuro, teria o vazio da ansiedade, daquele que nem vive o seu presente, pois
está em aflito e paralisado pelo medo do que virá, nem constrói o seu futuro,
pois se precipita na pressa e no imediatismo.
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