24. E Riobaldo fala da raiva e da soberania
Diadorim ainda demora e Riobaldo fica com raiva. E seus
companheiros percebem que ele não está bem.
“No mais, mal me lembro, mas sei que,
naqueles dias, eu estive muito maltrapilho. Em que era que eu podia achar
graça? De manhã, quando eu acordava, sempre supria raiva. Um me disse que eu
estava estando verde, má cara de doença – e que devia de ser de fígado. Pode
que seja, tenha sido. O Paspe, que cozinhava, cozinhou para mim os chás: o de
macela, o de erva-doce, o de losna. Oi. Dor, mesmo, nenhuma eu não tinha.
Somente perrengueava. ”
“Do que de uma feita, por me valer, eu
entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com
raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a
ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas,
seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por
uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras
horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento
alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o que um dia tivessem falado,
seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e
ações. O senhor me crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que
aquela raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como coisa
solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora eu estar passeando
pensar nelas. Hoje, que enfim eu medito mais nessa agenciação encoberta da
vida, fico me indagando: será que é a mesma coisa com a bebedice de amor?
Toleima. O senhor ainda me releve. Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho que
Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de
fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter.
Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que
essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da
gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. Zé Bebelo
falava sempre com a máquina de acerto – inteligência só. Entendi. Cumpri. Digo:
reniti, fazendo finca-pé, em força para não esparramar raivas. Lembro que
naquela manhã também o calor era menos, e o ar era bondoso. Aí eu à paz – com
vontade de alegria – como se estimasse recebendo um aviso.”
Uns dizem que foi Dom Miguel de Unamuno que, ao receber no rosto o
resto do vinho que estava no copo do seu interlocutor que, raivoso por não ter
mais argumentos para o debate resolveu arremessar a bebida na cara do grande
filósofo, respondeu dizendo algo do tipo:
- Tá bom. O vinho já veio. Excelente, tal como o meu. Mas, e o
argumento? Esse não vem? Quer dizer que você admite mesmo que não tem como
defender o que dizia antes?
Outros dizem que foi outra pessoa que fez isso. E alguns dizem que
essa história é um tipo de lenda. Mas de qualquer forma teria sido muito útil
num debate Russo, no qual o notoriamente ensandecido candidato de direita, ao
se ver sem argumentos, arremessou o seu suco de laranja no rosto do adversário.
Este, não sendo nenhum Unamuno, achou por bem fazer o mesmo e arremessou de
volta o seu próprio suco. E os dois candidatos pularam um no pescoço do outro
enquanto a versão russa do Jô Soares tentava desesperadamente apartar a briga.
Qual não foi a oportunidade perdida pelo adversário do direitista
enlouquecido? Ao menos se ele conhecesse a narrativa anterior... Talvez tivesse
tido a presença de espírito de lamber o suco que escorria em seu rosto, dizer
que estava excelente, perguntar se o argumento não viria mesmo... E se virar
para a camara da TV, dizendo:
- Algum de vocês ainda cogita votar nesse homem? É para esse ser
descontrolado que vocês pretendem entregar a mala com o botão das bombas
nucleares? Ele tem a mínima condição de governar alguma coisa?
E seria a glória.
Riobaldo nos mostra que sentir raiva é ser manipulado, é deixar
alguém governar a ideia e o sentir da gente. É fazer o que o outro quer que a
gente faça.
E é falta de soberania.
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