33. E Riobaldo fala da vingança
E Zé
Bebelo volta. Em seu julgamento ficara decidido que ele só poderia voltar de
Goiás se Joca Ramiro chamasse ou morresse. Joca Ramiro foi assassinado e ele
volta, para liderar o bando na caça a Hermógenes.
E depois
de idas e vindas, o bando acaba cercado pelos inimigos, de surpresa, enquanto
descansavam em uma fazenda. E o combate e as mortes começam.
Riobaldo
volta a oscilar em sua sede de certezas. Questiona a ruindade dos
ex-companheiros que fugiram com Hermógenes, depois do assassinato e que agora
cercaram o bando de Riobaldo na fazenda. E fazem duro combate.
“Surdo pensei: aqueles Hermógenes eram gente em tal
como nós, até pouquinho tempo reunidos companheiros, se diz – irmãos; e agora
se atravavam, naquela vontade de desigualar. Mas, por quê? Então o mundo era
muita doideira e pouca razão? De perto, a doideira não se figurava transcrita.”
E Riobaldo
tenta abafar seu discurso interno. Sente que enfraquece se ficar pensando
demais. Tenta focar no ódio sem rumo, supondo que aí estaria a sua força.
“Sosseguei. Aí eu não devia de pensar tantas
ideias. O pensar assim produzia mal – já era invocar o receio. Porque, então,
eu sobrava fora da roda, havia de ir esfriar sozinho. Agora, por me valer, eu
tinha de me ser como os outros, a força unida da gente mamava era no suscenso
da ira. O ódio quase sem rumo, sem porteira.”
Ou, dito
de outro modo:
“Para não se ter medo? Ah, para não se ter medo é
que se vai à raiva.”
A batalha
continua e Riobaldo, ao ver Diadorim combatendo, estranha a sua expressão,
volta a oscilar e tem dificuldade em ver sentido em tanta morte e dor. Acha que
sua terra não é ali, desconfia do que antes pensara ser sua força e se vê
novamente sem certezas.
“Desdenhei Diadorim. De ver Diadorim, que, em febre
de acertar e executar, não tomava consigo muita cautela, só forcejava por
vingança – punições maravilhosas. Diadorim, mesmo, a cara muito branca, de da
alma não se reconhecer, os olhos rajados de vermelho, o encovo. Aquilo era o
crer da guerra. Por que causa? Porque Joca Ramiro constava de assassinado
morrido? A razão normal de coisa nenhuma não é verdadeira, não maneja.
Arreneguei do que é a força – e que a gente não sabe – assombros da noite. A minha
terra era longe dali, no restante do mundo. O sertão é sem lugar. A Bigri,
mulher minha mãe, não tinha me rogado praga. Alta manhã – em tudo repetido o
igual: o cantar do rifleio, afora o feder ruim dos mortos e cavalos, e a
moscaria, que se esparramava. Mesmo com a minha vontade toda de paz e descanso,
eu estava trazido ali, no extrato, no meio daquela diversidade, despropósitos,
com a morte da banda da mão esquerda e da banda da mão direita, com a morte
nova em minha frente, eu senhor de certeza nenhuma. Sem Otacília, minha noiva,
que era para ser dona de tantos territórios agrícolas e adadas pastagens, com
tantas vertentes e veredas, formosura dos buritizais. O que era isso, que a
desordem da vida podia sempre mais do que a gente? Adjaz que me aconformar com
aquilo eu não queria, descido na inferneira. Carecia de que tudo esbarrasse,
momental meu, para se ter um recomeço. E isso era. Pela última vez, pelas
últimas. Eu queria minha vida própria, por meu querer governada.”
Ele queria
recomeçar, queria de volta sua soberania, não viver orientado por tanto ódio,
dor e vingança. E questiona se quer mesmo seguir com Diadorim nesse dever cego
de vingar.
“A tristeza, por Diadorim: que o ódio dele, no
fatal, por uma desforra, parecia até ódio de gente velha – sem a pele do olho.
Diadorim carecia do sangue do Hermógenes e do Ricardão, por via. Dois rios
diferentes – era o que nós dois atravessávamos?”
Dizem
existir dois tipos de vingança, a espanhola e a portuguesa.
A vingança
portuguesa seria como cuspir para cima. O cuspe cai de volta na própria cara.
Assim, as tentativas de vingança acabam prejudicando a própria pessoa que tenta
se vingar.
Talvez
pudéssemos considerar que toda vingança é, em verdade, do tipo portuguesa. Pois
não é uma ação verdadeira, mas somente reação automática. Pois não é um ato
soberano, mas somente uma prisão no dever de vingar a desonra.
Enfim,
parece não existir vingança que não seja portuguesa.
A vingança
espanhola, por sua vez, diz respeito a uma tradição das touradas espanholas.
Quando nessas ocorria de o touro matar o toureiro a esposa do toureiro morto
dançava para todos, na arena. Era como se dissesse: Eu sabia que existia o
risco dele morrer durante a tourada. E vou homenageá-lo dançando,
mostrando a todos que o valor é a vida, que ela continua, e que não vou perder
a graça. Seria assim uma forma de vingança estética – se é que se possa dizer
isso -, com beleza e movimento, e que privilegiaria a vida e a graça.
Enfim,
parece nem se tratar de uma vingança, verdadeiramente.
Pode-se
considerar como próprio de toda vingança a falta de soberania, uma vez que
vingar seria mesmo o exemplo maior de uma ação sem autonomia, uma ação
puramente orientada pelo outro. A vingança portuguesa, como comentamos, se
encaixa aqui. A vingança espanhola, paradoxalmente, não. É uma ação de parada e
retomada, de reconhecimento do dano e retorno ao movimento da vida, com
soberania.
E Riobaldo
parece sentir falta de sua soberania perdida.
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