51. De como temos que optar entre a lamentação e o amor
Do conto Campo Geral, do livro Manuelzão e Miguilim.
“- Miguilim, você tem medo
de morrer?
- Demais... Dito, eu tenho
um medo, mas só se fosse sozinho. Queria a gente todos morresse juntos...
- Eu tenho. Não queria ir
para o céu menino pequeno.”
A estória de Dito e Miguilim narra a vida de uma família
isolada num interior muito distante de tudo, sob a ótica dos dois pequenos
irmãos. É uma estória linda sobre a infância, os temores, o pasmo olhar infantil
diante do mundo adulto, as descobertas, o sofrimento.
A certa altura do conto Dito – o irmão menor – corta o pé
ao pisar num caco. O corte se infecciona e o menino piora. É o tétano se instalando.
E Dito chama seu irmão.
“Uma hora Dito chamou
Miguilim, queria ficar com Miguilim sozinho. Quase que ele não podia mais
falar. –‘Miguilim, e você não contou a estória da Cuca pingo-de-Ouro...’ –‘Mas
eu não posso, Dito, mesmo não posso! Eu gosto demais dela, estes dias todos...’
Como é que podia inventar estória? Miguilim soluçava. –‘Faz mal não, Miguilim,
mesmo ceguinha mesmo, ela há de me reconhecer...’ –‘No Céu, Dito? No Céu?!’ – e
Miguilim desengolia da garganta um desespero. –‘Chora não, Miguilim, de quem eu
gosto mais, junto com Mãe, é de você...’ E o Dito também não conseguia mais
falar direito, os dentes dele teimavam em ficar encostados, a boca mal abria,
mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: – ‘Miguilim, Miguilim, eu vou
ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre,
alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de
poder então ficar mais alegre, mais alegre, por dentro!’ ”
Um amigo disse-me um dia de suas duas avós, com vidas
praticamente idênticas e posturas radicalmente diferentes.
As duas eram de origem muito humilde, casaram-se muito
jovens, tiveram o mesmo número de filhos, os dois maridos se tornaram alcoólatras
e agressivos, as duas apanhavam muito, as duas ficaram viúvas mais ou menos com
a mesma idade e terminaram de criar seus filhos sozinhas, da mesma forma, como
costureiras.
As duas agora eram agora amparadas pelos seus filhos, que
estudaram e se estruturaram na vida.
Mas as semelhanças paravam aí. Uma delas era
absolutamente envolvida com a vida, alegre, feliz. Sabia-se idosa e sofria dos
problemas da idade, mas sem que isso abatesse seu gosto em viver.
A outra de tudo se queixava, nada estava bom, permanentemente
estava mal humorada, era muito hostil com todos e se sentia absolutamente
injustiçada. Enfim, estava afundada na própria lamentação.
Como era possível duas pessoas com histórias tão
semelhantes e tão distintas?
E Dito dizendo que podemos ser felizes mesmo com coisas
ruins acontecendo.
O personagem Antonio, do livro "Arroz de Palma", de Francisco Azevedo, diz algo a respeito na passagem abaixo.
"Quando penso que acabou, Sebastião ainda me cutuca a lembrança e me confidencia que não acredita em nada disso de pobre, rico, feio e bonito, mau e bom...para ele, só existem dois tipos de pessoas no mundo: as que reclamam e as que agradecem".
A lamentação é uma cachaça extremamente embriagante. Uma
vez engolida vamos afundando nela de tal forma que muitos não conseguem mais se
reerguer. A dor tem seu feitiço, como tão bem expresso por Paulo Mendes Campos:
“Por fim, mais uma palavra de bolso:
às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal
complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu
feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso, Alice, depois de ter
chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas
próprias lágrimas”.
Conclusão: a própria dor deve ter a
sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de
nossa dor, Maria da Graça.”
É perigoso ultrapassar a fronteira da própria dor. E é
necessário saber que muitas vezes temos que escolher por qual caminho irá: o da
lamentação que justifica todo nosso rancor ou o de se tentar tocar algum
possível que se apresenta diante de nós, como chance de felicidade, como chance
de amor.
No filme “Hiroxima, meu amor” a personagem principal, ao
rememorar o enorme sofrimento que sentiu durante sua adolescência, na segunda
grande guerra, vai se afundando de tal forma na dor e no desespero que o seu
namorado, também muito bem provido de sofrimento, pois perdeu sua família em Hiroxima,
e por isso mesmo conhecedor do poder embriagante da lamentação, a tira
bruscamente da espiral lamentativa na qual ela se afundava, estapeando-a. E ela
agradece-o, verdadeiramente.
E motivos justos para lamentar não nos falta. Assim como ninguém
é privado do amor, também ninguém é privado do sofrimento. Qual não é a
tentação de se afundar na lamentação e sentir-se justificado em todas as
dificuldades? Qual não é o conforto de se achar um culpado que não seja eu
mesmo para meus problemas?
Mas não podemos
esquecer que temos a opção. Está ao alcance de nossas mãos recuperar nossa
soberania, tatear com cuidado o nosso amigo tempo e escolher o amor. O poeta Czeslaw Milosz inspira-nos
nessa direção.
“Só agora estou sadio, e
era doente, porque meu tempo galopava e afligia-me o medo do que
viria.
por que o afastaria de
mim se não o afasta dos outros?
onde se viam nadando
enormes peixes marítimos.
Tive medo que se olhasse,
cairia. Virei então,
e movendo-me lentamente,
de costas para o mar, cheguei
a um lugar seguro.
incluindo entre elas a
faxina e a preparação da comida. Agora
corto com cuidado a
cebola, espremo os limões, preparo
vários tipos de molho.”
Ou, dito de outra forma, nas palavras de Antônio Cícero...
Presente
Por que não me deitar sobre este
gramado, se o consente o tempo,
e há um cheiro de flores e verde
e um céu azul por firmamento
e a brisa displicentemente
acaricia-me os cabelos?
E por que não, por um momento,
nem me lembrar que há sofrimento
de um lado e de outro e atrás e à frente
e, ouvindo os pássaros ao vento
sem mais nem menos, de repente,
antes que a idade breve leve
cabelos sonhos devaneios,
dar a mi mesmo este presente?
gramado, se o consente o tempo,
e há um cheiro de flores e verde
e um céu azul por firmamento
e a brisa displicentemente
acaricia-me os cabelos?
E por que não, por um momento,
nem me lembrar que há sofrimento
de um lado e de outro e atrás e à frente
e, ouvindo os pássaros ao vento
sem mais nem menos, de repente,
antes que a idade breve leve
cabelos sonhos devaneios,
dar a mi mesmo este presente?
Finalizando, voltemos ao Rosa:
"Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria... Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinhos... Essa... a alegria que ele quer."
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